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Biografia

Hamburgo, Alemanha 1914 a 1933

No dia 4 de julho de 1914, alguns dias após o assassinato do Arquiduque Francisco Fernando da Austria, em Sarajevo, nasce, em Hamburgo, Ruth Erika Myriam Bessoudo.

Sarajevo 1914

A Historia e a Arte vão marcar sua vida ao longo de um vai-e-vem entre dois continentes que vai durar mais de um século.

Clara Boehm (ou Böhm), a mãe de Ruth, nasceu na Baviera, em 1879, de mãe alemã, dama de honra do ducado de Saxe, na corte de Coburgo, e o pai era um filólogo grego. Clara se casou pela primeira vez com um comerciante alemão, Westphalen, com quem teve, em 1908, um filho, Joachim Wilhelm Carl. Divorciada, casou-se novamente, em 1914, em Londres, com Haim Isaac Bessoudo Malzatow, que seria o pai de Ruth, comerciante em importação-exportação de tapetes do Oriente.

Ariste Parnos – 1900

Clara, aliás Ariste Parnos ou Clara Kollendt, seus pseudônimos, era atriz de teatro e residia com seu marido na grande cidade comerciante e portuária, onde Haim exercia sua atividade e possuia entrepostos e uma loja. O pai de Ruth, judeu sefardita, filho de um banqueiro, nascera em 1878, em Istambul.

Hamburgo sofre com o bloqueio do porto e com a interrupção de suas atividades comerciais durante a Primeira Guerra. Désirée, segunda filha de Clara e Haim, vem ao mundo em 1920, quando Ruth tem seis anos. A ameaça da ascensão politica de Adolf Hitler e de seu partido antisemita preocupa Haim Bessoudo que se aproveita de um decreto do presidente do diretório militar espanhol Primo Rivera, concedendo a nacionalidade espanhola aos descendentes dos judeus sefarditas expulsos da Espanha, em 1492, por Isabel, a Católica e Fernando II.

Haim obtém, junto ao consulado geral da Espanha, em Hamburgo, a nacionalidade espanhola para si e para as filhas em 1924, mas a familia permanece na Alemanha. Em 1932, Ruth se matricula na Escola de Belas Artes de Hamburgo, dirigida por Karl Schneider, um dos representantes do movimento arquitetônico «Nova Objetividade». Com a chegada de Hitler ao poder, em 1933, Schneider, cuja obra é considerada arte degenerada pelo regime nazista, tem de deixar seu posto. Por essa razão, Ruth deixa sua terra natal, após o primeiro semestre para prosseguir seus estudos na Dinamarca.

Europa entre guerras, 1933 a 1939

Entre setembro de 1933 e maio de 1935, Ruth é aluna na Escola de desenho, arte e indústria de Copenhague. Ela retorna em seguida a Hamburgo, onde permanece por algum tempo. Em virtude de um intercâmbio entre estudantes franceses e alemães, no contexto da tentativa de reconciliação entre os dois países depois da Primeira Guerra, ela fica conhecendo Amy Bakaloff Courvoisier com quem aprende francês e que, mais tarde, se tornará seu marido.

Ruth, nos anos trinta

De novembro de 1935 até julho de 1936, Ruth vai estudar na França numa escola especializada em desenho de pôsteres, cartazes, cujo diretor é Paul Colin (1892-1985), célebre cartazista francês. Em seguida, ela realiza várias viagens para estudar ou fazer estágios: sul da França, Córsega, África do Norte, Hungria, Holanda e Escandinávia.

Ruth começa a se afirmar como desenhista de pôsteres e ilustradora de livros. Ela cria um pseudônimo artístico e passa a assinar « Ruth Bess ».

Xilogravura Ruth Bess 1933

Na mesma época, seu pai, fugindo da perseguição nazista e com dificuldades para exercer sua profissão, vai deixar a Alemanha e se refugiar na África do Norte.

Em setembro de 1939, no início da Segunda Guerra, por ser alemã, Ruth se vê obrigada a voltar ao seu pais de nascimento para fazer o Reichsarbeitsdienst (RAD, “Serviço de Trabalho do Reich”), serviço compulsório que fora expandido incluindo também as mulheres jovens. Ela é poupada das leis antisemitas de Nüremberg devido a seu estatuto de mischling (filhos de casamentos entre alemães e judeus).

Estatuto oficial de Ruth como “mischling”, meio-judia 1945

Retorno a Hamburgo de 1939 a 1951

Schlüter Strasse, Hamburgo

As relações entre Ruth et Amy Courvoisier vão perdurar, mas sobretudo através de cartas, durante todo o periodo conturbado da guerra : ela não pode sair da Alemanha, onde mora com a mãe no endereço 6 Schlüter Strasse, em Hamburgo, e ele, jovem estudante de Letras, se engajou na Resistência Francesa, o que não facilita encontros entre eles.

Carteira de identidade postal permitindo Ruth enviar correspondência para o exterior – 1942

Em janeiro de 1939, Ruth recebe uma carta oficial do ministério da educação e da propaganda proibindo-a de exercer sua profissão de grafista-ilustradora. Ela tenta por carta argumentar junto à « câmara de cultura » que tem nacionalidade espanhola, mas sem nenhum resultado…

Certidao de obito Haïm Bessoudo – 1942

De setembro 1940 a março 1944, ela vai trabalhar em Hamburgo, como secretária (é a qualificação oficial que consta do contrato) para a empresa de concepção de produtos publicitarios « Rolf et Gunther Berendsohn » (dois irmãos que, como ela, são mischlingen ).

O pai de Ruth, Haim Isaac Bessoudo, morre, em Tanger, Marrocos, em 1942, com 63 anos, longe da mulher e dos filhos.

Certificado de trabalho de Ruth para Garrison Theater-1945

Com a derrota do exército alemão em Stalingrado e a rendição das tropas alemãs e italianas na África do Norte em 1943, a guerra, como se sabe, toma outro rumo em favor dos Aliados. A cidade de Hamburgo é frequentemente bombardeada pela Royal Air Force e pela U.S. Army. Quando o norte da Alemanha é tomado pelos Aliados, Ruth se põe a serviço de suas tropas como cartazista e criadora de logotipos para a ajuda social militar, « Army Welfare Service » e, sobretudo para a « Entertainments National Service Association Garrison Theater », uma sala de espetáculos de Hamburgo requisicionada para entreter as tropas estrangeiras que estavam na região. Em 1945, depois da capitulação da Alemanha, ela se torna enfim membro da « Bundes Deutscher Gebrauchsgraphiker ».

Certificado de trabalho de Ruth para H.I.C.O.G- 1951

Em 1951, Ruth trabalha para a HICOG  « High Commissioner for Germany » (Alta Comissão Aliada), sob as ordens da pintora americana Virginia Chism Darcé, tendo participado da criação de pinturas murais para decorar o consulado americano de Hamburgo.

De 1952 a 1959: retorno da liberdade em Caracas

Ruth e Amy

Marcado e moralmente abatido pela guerra, Amy deixa a Europa em 1947 para se instalar em Caracas, seguindo o conselho de um amigo poeta venezuelano. Ruth se junta a ele em 1952. Amy torna-se critico de cinema, escreve artigos para revistas especializadas locais – como Cine Mundo, Venezuela Cine, Paginas, Elite – e cria o primeiro Ciné Clube e o primeiro Festival do Filme venezuelanos. Ele trabalha em colaboração com Gaston Diehl, critico de arte e adido cultural junto à embaixada francesa na Venezuela, durante os anos 1950.

Graças a Amy, Ruth consegue um emprego, primeiro como grafista na imprensa cinematografica, depois como responsavel comercial. Em 1955, Amy torna -se delegado Unifrance – empresa que promove e exporta o cinema francês para o mundo inteiro – representando a América Latina.

Ruth e Jean Cocteau – Festival de Cannes 1953

Ruth e Amy moram oficialmente no centro de Caracas, mas, à época, passam muito tempo viajando entre a América do Sul e a Europa para participar de festivais, encontrar atores, diretores e produtores.

Ruth e Yves Montand – Festival de Cannes 1953

Suas relações não se limitam contudo ao mundo do cinema: Amy, durante seus anos na Resistência, em Paris, estabeleceu laços de amizade com poetas e artistas do movimento surrealista, dentre eles: Paul Eluard, Paul Valéry, André Breton, Georges Hugnet, Jean Cocteau, Robert Desnos, Luis Bunuel, Pablo Picasso, Wifredo Lam, Angel Hurtado, Oswaldo Vigas, Oscar Dominguez, Dali, Victor Brauner.

Ruth e Raf Vallone em Cannes – 1954
Ruth e Jean Marais em Cannes – 1953
Ruth, Amy e o pintor Wifredo Lam em Canaïma, Venezuela – 1957

Amy não desenha, mas escreve poemas que serão publicados pelas Edições Saint Germain des Prés, frequentemente ilustrados pelas obras de Ruth. O casal descobre a natureza exuberante da América do Sul e faz numerosas excursões no parque natural de Canaïma na Venezuela, em 1957, em compahia do amigo pintor cubano Wifredo Lam.

Amy e Luis bunuel, almoço em la cidade de México – 1957

Entretanto, em meio a recepções, passeios, jantares com amigos, os festivais e os inúmeros encontros com pessoas enriquecedoras e célebres, a realidade do terrível periodo de guerra irrompe novamente: Ruth deve ajudar a mãe, Clara, a reunir os papéis necessários para fazer um requerimento junto ao órgão alemão em Hamburgo encarregado das reparações pela espoliação do pai Haim durante o terceiro Reich.

Documento oficial indenizaçao Ruth do estado alemao – 1956

Em 1956, Dona Clara Boehm, viúva Bessoudo e suas filhas Ruth e Désirée obtêm uma indenização do estado alemão. Essa indenização é pequena, se comparada às perseguições e às perdas comerciais da empresa de importação-exportação do pai, mas fecha-se um ciclo.

De 1960 ao inicio dos anos 80: O apogeu no Rio de Janeiro, Brasil

Ruth está com 46 anos. Amy sempre sonhou em viver no Brasil. Eles se mudam para um apartamento do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, que se torna seu novo porto seguro, embora continuem a viajar pelo mundo, por motivos profissionais, como faziam em Caracas. Em 13 de dezembro de 1961, eles se casam, em Caracas, onde vive a maioria dos amigos do casal.

Ruth e Amy

Em 1964, Ruth recebe a noticia da morte da mãe em Hamburgo, aos 85 anos. No testamento deixado por ela, seus bens são divididos entre os três filhos : Joachim (o meio-irmão), Ruth e a irmã Désirée, que mora em Washington.

O casal continua a levar uma vida de encontros profissionais – Amy trabalha com a divulgação do cinema francês na América Latina, é a época da Nouvelle Vague –, artísticos, culturais e de amizade naquele novo e magnífico cenário que é a baia do Rio. Ruth, além de sua língua materna, o alemão, torna-se uma verdadeira poliglota : ela fala perfeitamente francês,espanhol, português e sabe se expressar em dinamarquês e inglês.

Foto autografada por Alain Delon para Ruth
foto autografada por Mylène Demongeot para Ruth

É nesse momento, precisamente em 1964, que Ruth, fortemente encorajada a praticar a gravura por seus amigos Jorge Amado e Monsieur e madame Senghor, ingressa no atelier de gravura criado pelo pintor Johnny Friedlaender a pedido da UNESCO, no Museu de arte moderna do Rio (veja pagina no meu blog) . Ela vai conviver com artistas brasileiros tais como Edith Behring, Roberto de Lamonica, Anna Letycia Quadros, Thereza Miranda, e se especializa na técnica de água-forte com procedimento de água-tinta : uma técnica de gravura de encavo em placa de metal, chamada calcografia ou calcogravura.

Ruth, Renée e Henri Senghor ( embaixador senêgales no Brasil) – anos 70

Seus temas de predileção são a fauna e a flora da América do Sul. Um de seus animais preferidos é o tatu, animal sagrado da cultura ameríndia, que « fixa as fronteiras e nos ajuda a delimitar o que aceitamos viver, a estabelecer as barreiras necessárias a nosso equilibrio pessoal »

Jacaré folha – Ruth Bess

Em suas primeiras gravuras, as cores são discretas, se apresentam em degradê. Os animais são representados en mise en abîme ou desmantelados como num quebra-cabeças, tendo como fundo um detalhe ampliado da flora, folha ou ervas.

Tatu puzzle – Ruth Bess

Depois, embora sempre numa gama de tons naturais, as cores se tornam mais nuançadas, mais luminosas também, os traços e contornos são mais finos, mais detalhados. A flora se enriquece com representações de flores e frutos. Pequenos elementos emoldurados como se fossem cartuchos aparecem em muitas de suas obras. Pouco a pouco, Ruth vai introduzir o verde e o amarelo, às vezes o azul ou o vermelho, sempre de modo nuançado, de modo que suas gravuras se tornam mais brilhantes, mais nitidas. O desenho do animal se torna mais estilizado, embora sempre perfeitamente reconhecivel.

Sonho da preguiça – Ruth Bess

O procedimento de mise en abîme dos animais é recorrente. Esse leitmotiv acaba por assumir constatemente a forma de uma fêmea grávida, cujos filhotes são visiveis no interior do corpo, como se fosse uma imagem de ecografia. Talvez um desejo de maternidade que Ruth nunca conheceu…

Tatu mae – Ruth Bess

Ruth passa a viajar pelo mundo inteiro. As oportunidades para expor suas gravuras se sucedem : bienais ou concursos de gravuras, galerias de arte, exposições individuais e coletivas itinerantes ou não, salões de arte… Cada lugar se torna também uma ocasião para visitar, fazer turismo, aprimorar sua técnica adquirindo novos equipamentos. Em seus deslocamentos, ela leva grandes pastas de portfólio ou até mesmo caixas de madeira para transportar suas gravuras sem danificá-las.

O humor se faz presente em certas gravuras da artista. Ela se diverte, pondo em cena seus animais fetiches não em seus ambientes naturais, mas na vida quotidiana da sociedade moderna : as distrações, o consumo, o amor, o desenvolvimento das grandes cidades…

Pesadelo do carneiro – Ruth Bess

No início dos anos 1980, a saúde de Amy começa a se deteriorar. Ele tem mais de 70 anos e Ruth mais de sessenta. O casal decide voltar a Paris.

Ruth e Amy – 1974

De 1984 a 2015: O fim de uma viagem

Amy – 1980

Amy Courvoisier faleceu em 11 de abril de 1984 no hospital Pitié-Salpêtrière em Paris.

Ruth e alguns amigos fiéis se reúnem então no Pont des Arts, em Paris, no mesmo lugar onde, em 1943, Amy Courvoisier (aliás Jean Jaquet, seu nome de resistente) escapou por pouco de ser preso por uma patrulha alemã. Conforme sua última vontade, suas cinzas são espalhadas no rio Sena. Amy continuará assim a viajar através dos rios, mares e oceanos. Ruth perdeu seu amigo, seu esposo e seu companheiro de estrada.

A familia de Ruth é reduzida a quase ninguém: uma irmã nos Estados Unidos e um sobrinho em Hamburgo. Ela decide voltar a morar no Venezuela, onde segue ativamente sua carreira artistica. Em 1990, quando expôs 17 gravuras individualmente ( exposiçao ” Los Armadillos” ) no Museu de Belas Artes de Caracas, ela partiu pouco depois para se estabelecer definitivamente em Paris. Entretanto, acompanhada e apoiada por seus amigos, ela aluga um apartamento em Paris e continua a expor suas gravuras e a viajar pela França, Europa e América do Sul.

Em 1995, ela compra um apartamento de quarto e sala no numero 57 da rue du Théâtre em Paris, no qual reúne suas lembranças de viagem, seu material de gravura e de desenho. Ela passa a morar bem ao lado de um velho amigo seu e de Amy, Pierre, um francês que eles conheceram no Rio de Janeiro.

Ruth em sua oficina de gravura em Paris

Ela dispões de um pequeno atelier num canto da sala iluminado por uma imensa janela, um cômodo muito claro. Com 81 anos, ela se encontra com boa saúde, sem problemas de locomoção. Assim se passam cerca de dez anos, antes que Ruth comece a apresentar sinais de senilidade e não possa mais viver sozinha.

Fim de 2005, Ruth recebe a noticia da morte de sua irmã Désiréé. Em vista de seu estado, os médicos decidem interná-la no hospital de Vaugirard. A partir de 2013, ela é colocada sob tutela.

Ruth Bessoudo Couvoisier faleceu em 19 de maio de 2015, no hospital de Vaugirard, com mais de 100 anos. Seu apartamento da rue du Théâtre permaneceu vazio durante cerca de dez anos, mas povoado pelas lembranças felizes e infelizes de uma vida excepcional.

Coleçao de poemas de Amy Courvoisier com dedicatoria manuscrita para Ruth:

« Para Ruth, minha Poufi,

Esse livro que fala do que está à nossa volta e nos protege – os quadros em nossas paredes –, do que nos faz esquecer o barulho infernal da rua, os gritos histéricos da moradora do segundo andar, o horizonte escondido pelos edificios em construção, a tristeza de viver em um mundo sem esperança

Com todo o meu amor

Amy

Rio de Janeiro

Domingo, 21 de outubro de 1973 »

Tous mes chaleureux remerciements à mon amie Jovita Gerheim Noronha pour la traduction de cette page